Manoel Bocarro Francês, o profeta português da Nova Era

No século XVII o hermetismo se espalhou pela Europa, e teve em Manoel Bocarro o seu primeiro representante em Portugal. Médico, astrônomo, astrólogo e matemático, foi também profeta anunciando a Nova Era e a futura grandeza da monarquia portuguesa.

Texto de Bira Câmara



Um nome ilustre na história da astrologia e do hermetismo em Portugal, mas pouco conhecido do grande público, é o de Manoel Bocarro Francês (1593- 1662), ou Jacob Rosales, médico judeu-português nascido em Lisboa. 


A alcunha Francês incorporou-se ao seu nome porque obteve o doutorado pela Universidade de Montpellier, pela Universidade de Alcalá de Henares e também pela Universidade de Coimbra, possuindo conhecimentos de Matemática e de Astrologia, que aprendeu junto a mestres notáveis de seu tempo como Galileu Galilei e Johannes Kepler.


Além de escrever um livro sobre o cometa que surgiu nos céus desta cidade em 1618, foi também autor de uma obra sebastianista, Anacephaleoses da Monarchia Luzitana, publicada em 1624. Por causa de suas teses judaizantes tornou-se alvo de perseguição do Santo Ofício e teve de abandonar Portugal neste mesmo ano. 


Bocarro era descendente de uma família de judeus que foram obrigados pelo rei D. Manuel a tornarem-se cristãos. A maioria acabou por se integrar à nova religião, mas algumas famílias como a dos Bocarro, entre outras tantas, continuou seguindo a crença de seus ancestrais. 

Quando ainda era estudante, Manoel Bocarro já começou a se preocupar com o assunto que seria o tema de sua obra principal: a esperança na vinda do Messias. Havia entre os cristãos-novos judaizantes uma grande efervescência e falava-se a boca pequena na vinda do Messias. Em Portugal, muitos deles acalentavam a esperança da vinda do Encoberto, o rei que deveria instaurar uma nova Era para o mundo. 

Retrato de D. Sebastião
As célebres profecias do Bandarra se alastraram tanto, que o Tribunal do Santo Ofício chegou a prendê-lo. Com o desaparecimento de D. Sebastião na África, o messianismo judaico misturou-se às trovas deste “cristão-velho metido em meio a cristãos-novos”. Enfim - relata o biógrafo de Bocarro -, “já andam a dizer que os portugueses são como nós judeus, andam a esperar alguém que nunca virá. Judeus e portugueses, portugueses e judeus, estamos mesmo bem misturados”.

Manoel foi ser médico como seu pai e estudou em Alcalá de Henares e em Siguenza, na Espanha. 

O cometa da Nova Era 

No final do ano de 1618 surgiu um cometa nos céus de Lisboa. Manoel Bocarro, que além de médico era também astrônomo, astrólogo e matemático escreveu um livro sobre este astro, que tinha a forma de uma folha de palma. Grandes acontecimentos foram prenunciados por sua causa, mas para Bocarro, o cometa descortinava a luz de uma Nova Era. 

No ano seguinte, em janeiro de 1619, publicou seu primeiro livro, Tratado dos Cometas que Apareceram no anno passado de 1618. Nesta obra, além das considerações de ordem física e matemática, Bocarro ocupou-se também de astrologia judiciária, tentando prever os acontecimentos que o cometa anunciava. Ele acreditava que se descortinava um período de convulsões, com assassinatos de monarcas e grandes mudanças na Europa. Mas a derrota do Império Turco, sinal da vitória final da cristandade, ainda não era prenunciada por este cometa. O livro foi dedicado ao Inquisidor-Geral de Portugal e, para demonstrar sua fidelidade à Igreja e não despertar suspeitas sobre suas origens e verdadeiras crenças, encerrou a obra com loas à Virgem Maria... 

Em 1620, Bocarro recebeu autorização para clinicar em Portugal e por causa de sua atividade médica viajava constantemente à Espanha, onde cuidou de D. Baltazar de Zuñiga, alto dignitário, ministro da Itália e figura importante na Espanha naqueles dias. Tornou-se amigo do seu ilustre paciente, com quem discutia a física aristotélica, alquimia e astrologia judiciária. Foi então que decidiu escrever sobre como Portugal seria a última e maior monarquia do mundo e de como o Rei Encoberto surgiria, trazendo uma Nova Era de luz para todos. 

Anacephaleoses da Monarchia Luzitana, sua principal obra, foi publicada em Lisboa em março de 1624. Composta por 131 versos em oitava, entre os quais alguns dedicados à alquimia, tornou-se o primeiro texto português escrito sobre hermetismo. Admirador de Camões, Bocarro copiou-lhe o estilo, começando por cantar o passado de Portugal antes de anunciar seu futuro glorioso. 

Bocarro planejava escrever quatro Anacephaleoses (palavra grega que significa recapitulação), mas ficou apenas na primeira, chamada de “Stado Astrológico”, onde mostrava “astrologicamente como Portugal há de ser a última e mais poderosa monarquia do mundo” e também discorria sobre a Pedra Filosofal e a transmutação dos metais em ouro. Bocarro não conseguiu publicar as quatro partes de sua obra, somente a primeira chegou ao prelo. As outras foram queimadas ou interrompidas em sua publicação. 

O livro provocou descontentamento junto às autoridades e o Rei Felipe de Espanha, apesar da dedicatória a ele, não gostou de saber que Portugal seria a última e maior monarquia de todas. Isto levou Bocarro à prisão, de onde saiu após curta estadia graças à ajuda de D. Francisco de Melo, um fidalgo cuja simpatia angariou. 

Além disto, um irmão de Manoel delatou-o como praticante do judaísmo ao Santo Ofício em Goa. Nesta época, a presença judaica em território espanhol e qualquer prática religiosa que não fosse a católica eram punidas severamente pela Inquisição, razão pela qual Bocarro teve de fugir de Portugal com sua família e ir para a Itália. 

Amigo de Galileu 

Galileu
Em Roma, Manoel Bocarro exerceu a medicina atendendo a pacientes famosos e ricos, além de encontrar-se com pessoas interessadas em suas idéias sobre física, astronomia e profecias. Conheceu Galileu Galilei, que se interessou por suas críticas à física de Aristóteles e por suas observações astronômicas. 

Em 1626 publicou a quarta parte de Anacephaleoses. Galileu prefaciou esta nova obra denominada Luz Pequena Lunar e Estellifera da Monarchia Luzitana. A luz menor da lua e das estrelas, simbolizando Portugal restaurado, representava a etapa preliminar na grande luz do Sol de uma Nova Era. 

Sentiu-se livre para declarar sua condição de judeu e acrescentar o nome “Rosales” ao seu nome original, explicando tratar-se do nome de um ancestral judeu. “Este nome, segundo ele, contém em si a explicação para sua função neste mundo, revelar o Rei Encoberto”. Rosales seria o resultado da composição da expressão hebraica “Bebarzel ve Esh”, com ferro e fogo (seu nome será revelado), aludindo assim a uma antiga tradição de que o Encoberto traria a “marca de ferro” em seu nome. Acreditava-se imbuído da missão de revelar a todos sua existência, e, segundo suas palavras, ele nada mais era “do que o ponteiro do relógio que é obrigado a apontar as horas”. 

Declarou também que D. Teodósio, Duque de Bragança (pai do rei D. João IV), parente de D. Sebastião, seria o próprio Encoberto

Em fins dos anos 20, Bocarro mudou-se para Hamburgo, cidade que contava com uma próspera comunidade de judeus. Lá se tornou médico de membros da nobreza, muito conceituado e afamado. Viajava constantemente para Amsterdam, onde manteve laços de amizade com importantes figuras, como o também médico Zacuto Lusitano. 

Em 1641 Rosales sofreu um duro golpe com a morte de seu único filho, de 17 anos, vítima de uma doença que ele foi incapaz de curar. 

Rosales continuou a manter estreitos laços com Francisco de Melo, ligado à casa reinante espanhola, que o havia livrado da prisão em Portugal. Desta forma, tornou-se agente dos interesses espanhóis em Hamburgo, tarefa que executou até 1650. Por causa disso, em 1647, o imperador espanhol tinha sido agraciado com o título nobiliárquico de Comes Palatino, fato muito raro em se tratando de um judeu.

Mesmo defendendo ativamente os interesses da Espanha contra Portugal, publicou uma nova edição do Anacephaleoses, em 1644, mas sem qualquer referência à religião cristã e sem as oitavas que tratavam da Pedra Filosofal. Continuou a proclamar a vinda do Encoberto e o destino de Portugal como a última monarquia do mundo, referindo-se à Restauração portuguesa de 1640 como uma etapa neste processo, previsto por ele em 1624. 

No início dos anos 50, Rosales perdeu sua função como agente dos interesses espanhóis em Hamburgo e voltou para a Itália. Em Livorno passou a viver junto à comunidade judaico-portuguesa daquela cidade. 

Em 1654 publicou seu último livro, Trium Verarum Propositione Astronomica, Astrologica et Philosophica. Nele Rosales manteve as críticas a Aristóteles e continuou usando a astrologia como instrumento de previsão das mudanças políticas que ocorreriam no mundo. Com a numerologia como recurso auxiliar, vaticinou sobre os diversos países da Europa e sobre Portugal, reafirmando seu destino como última e maior monarquia do mundo, regida pelo rei Encoberto, prenúncio de uma Nova Era de paz, fraternidade e esplendor.


Alcançou reconhecimento e notoriedade em como médico em diversas cortes europeias, graças ao método que utilizava para o tratamento dos seus pacientes. Entre estes se destacam os nomes das duas imperatrizes Leonor e Maria e do Príncipe da Dinamarca, filho de Cristerno IV.


Rosales morreu em 1662, a caminho de Florença quando ia atender sua paciente, a condessa de Strozi.

Fontes consultadas:


Francisco Moreno de Carvalho, MANOEL BOCARRO FRANCÊS - "JACOB ROSALES" em: http://www.vidaslusofonas.pt/manoel_bocarro_frances.htm

Francisco Moreno de Carvalho, Bocarro Francez.pdf, tese de doutorado pela USP, em: https://app.box.com/s/07ec9d6c39114adtbt9tp288ppbj2hhm

Roland BÉHAR, Soñar con el Imperio portugués, desde Hamburgo: el singular destino del médico, astrólogo y poeta Manuel Bocarro Francês, em:

Rui Grilo Capelo, Sebastianismo e Esoterismo, em: https://espacoastrologico.com.br/2018/10/09/sebastianismo-e-esoterismo/



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