Lord Edward George Bulwer-Lytton (1803-1873) é conhecido pelo público brasileiro como o autor de “Os Últimos Dias de Pompéia” (1834), um grande clássico da literatura inglesa e, sobretudo, pelo romance ocultista “Zanoni” (1842), que teve incontáveis reedições no Brasil.
Texto de Bira Câmara
Além de político destacado, foi também ocultista praticante, interessado nos mais diversos fenômenos paranormais e seu interesse pela magia e pelo espiritualismo o levaram a conhecer o célebre ocultista francês Eliphas Lévi. A Sociedade Rosacruz Inglesa, fundada em 1867 por Robert Wentworth Little, elegeu Bulwer-Lytton como “Grande Patrono“, mas ele escreveu para a sociedade dizendo-se ”extremamente surpreso“ por este título e recusou-o. No entanto, muitos grupos esotéricos têm reivindicado a filiação de Bulwer-Lytton, principalmente porque alguns de seus escritos, como”Zanoni”, contém noções esotéricas e rosacrucianas. Diz-se também que teria sido membro da Irmandade Hermética de Luxor, ultra-secreta sociedade rosacruciana que, segundo autores esotéricos, teve um papel importante na política, na cultura e no espiritualismo do Século XIX. Mas em público, o escritor não costumava falar de sua relação com os fenômenos psíquicos, embora na sua autobiografia encontrem-se referências ao médium Douglas Home e a algumas sessões espíritas, junto com o seu filho. Nada mais natural, portanto, que o misticismo e o sobrenatural tenham inspirado várias obras do novelista, em especial “Zanoni”, “Uma estranha história” e “A casa e o cérebro”.
Estranhamente, os editores brasileiros ignoraram até agora uma de suas obras mais curiosas, Vrill, the Power of the Coming Race. Atraído pelo gênero fantástico nas suas diversas vertentes, Lytton publicou esse romance em 1871, no célebre “Blackwood’s Magazine”, uma obra que tem a originalidade de abordar assuntos que se tornariam correntes na ficção-científica. Em muitos aspectos trata-se de um texto antecipador, abrangendo temas que vão do feminismo, passando por reformas políticas e sociais, e a invenções tecnológicas. Pode-se estabelecer um elo entre a obra de Lytton e a “Utopia”, de Thomas More e, sobretudo, com alguns textos de Júlio Verne e H.G. Wells. O mito da Atlântida, a existência de prodigiosas forças eletromagnéticas, as potencialidades da ciência e da tecnologia, a adoção de modelos sociais avançados – tudo isso permeia a história dessa “raça futura” que, um dia, surgindo das profundezas da terra, dominará o mundo.
Uma utopia socialista
No mundo utópico de Lytton, o ideal socialista foi plenamente alcançado; ali reina a igualdade absoluta e a harmonia não só entre homens e mulheres, mas também entre as classes sociais. O mais humilde cidadão goza da mesma consideração de um magistrado supremo. Não há vaidade, egoísmo, culto à personalidade ou amor à fama. Os mais elevados cargos da comunidade não trazem consigo privilégios nem vantagens pecuniárias. Todo cidadão coloca o bem estar da comunidade acima de tudo, até mesmo da sua própria sobrevivência. Não há pobres, pois uma carga tributária intolerável numa sociedade como a nossa, é usada sabiamente de modo a prover as necessidades básicas dos menos afortunados. Tudo isso lembra as mais caras aspirações depositadas pelos filósofos num regime socialista, mas Lytton não é tão ingênuo ao ponto de acreditar que apenas um credo político poderia fazer funcionar uma sociedade tão perfeita. Ele sabe que este tipo de sociedade só pode dar certo com homens também perfeitos, tanto do ponto de vista ético, moral, intelectual como racial. E a base metafísica e religiosa que sustenta este mundo é a crença geral num ser supremo e a certeza de uma vida melhor após a morte, sem discussões ou considerações sobre o além. Aliás, os habitantes desse mundo subterrâneo (que poderia muito bem ser em outro planeta ou dimensão, dadas as suas diferenças em relação ao nosso mundo), depois de séculos de guerras e querelas filosóficas, científicas e religiosas, chegaram à sábia conclusão que discussões metafísicas só levam a disputas inúteis, perda de tempo e guerras, concluindo pela absoluta impossibilidade de conhecer os atributos da divindade e o que existe depois da morte. Portanto, alcançaram a paz absoluta abolindo tais discussões e dedicando-se apenas a atividades utilitárias, em prol do bem estar geral.
Há um tom velado de ironia em algumas passagens da obra; assim, a teoria aceita pela raça do mundo subterrâneo sobre a sua origem é um evolucionismo abstruso: este povo acredita descender das... rãs! Em mais de um trecho fica evidente o atraso da nossa civilização, simplesmente pela descrição de outra que chegou às raias da perfeição. Aliás, esta é a tônica da obra e aí está, verdadeiramente, a ameaça que pesa sobre nossas cabeças, ao perpetuarmos esta civilização belicosa, individualista, injusta e desumana, que poderá arrastar-nos mais cedo ou mais tarde à destruição...

Lytton abusa de descrições detalhadas sobre a organização social, o regime político, a estrutura da língua desse povo subterâneo, com tanta ênfase que quase somos levados a crer que se trata de algo que o autor viu com seus próprios olhos. Muitas das comodidades modernas são descritas nesta novela: elevadores, aeroplanos, música ambiente, autômatos, máquinas agrícolas, veículos automotores; há até um capítulo dedicado à forma mais civilizada de lidar com a morte: a cremação de cadáveres... O próprio vril parece uma antecipação da energia nuclear, que ainda hoje a humanidade não aprendeu a usar com sabedoria. Uma das poucas antevisões desta novela ainda parece distante: a realização de um dos mais antigos sonhos do homem: a de voar como os pássaros. Perto das asas do povo subterrâneo movidas pela energia do vril, nossas asas deltas e ultra-leves com motor à explosão parecem engenhos rudimentares e primitivos...
Graças a esse talento visionário, há quem acredite que A Raça Futura seria mais do que uma obra de ficção, mas o relato de alguém que teria de fato conhecido esse mundo oculto... O livro foi bastante popular no final do século 19, e a palavra Vril chegou a ser associada a “elixires da vida.”
O conceito de Vril recebeu um novo impulso pelo autor francês Louis Jacolliot (1837-1890), que foi cônsul francês em Calcutá. Em Les Fils de Dieu (1873) e Les Traditions Indo-européennes (1876), Jacolliot alega que encontrou Vril entre os jainistas em Mysore e Gujarat. No século XX, o Vril também foi incorporado a teorias sobre discos voadores nazistas.
Muitos comentaristas convenceram-se de que a idéia do fictício Vril foi baseada em uma verdadeira força mágica. Helena Blavatsky, a fundadora da Teosofia, endossou essa visão em seu livro Isis sem Véu (1877) e novamente em Doutrina Secreta (1888). Para Jacolliot e Blavatsky, a energia Vril dominada por uma elite humana é parte de uma doutrina mística de uma raça desconhecida de nós. No entanto, o caráter do povo subterrâneo foi transformado por eles e, em vez de potenciais conquistadores, estranhamente tornaram-se benevolentes guias espirituais... Quando o teosofista William Scott-Elliot descreve a vida na Atlântida em The Story of Atlantis & The Lost Lemuria (1896), o avião dos atlantes é movido pela energia Vril. Obviamente, ele não considerou a descrição como ficção, e seus livros ainda são publicadas pela Sociedade Teosófica.
Mundo Subterrâneo

As especulações sobre o Vril não cessaram até hoje, o que prova o impacto provocado pela obra de Lytton, embora o assunto não tenha sido mais abordado pela Sociedade Teosófica. Um autor alemão chamado Wilhelm Landig ligou o Vril a supostos discos voadores nazistas e a uma fantasiosa fuga de dirigentes nazistas à Antártida...
Em 1960, Jacques Bergier e Louis Pauwels relataram a existência de uma Sociedade Vril, no livro Despertar dos Mágicos. Segundo eles, o Vril Society era uma comunidade secreta de ocultistas na Berlim pré-nazista, mas na verdade esta sociedade seria apenas uma espécie de círculo de estudos interno da Sociedade Thule. Há, também, a suposição de que mantinham estreito contato com o grupo inglês conhecido como Ordem Hermética da Golden Dawn. As informações sobre o Vril ocupam cerca de um décimo do volume, constituindo-se o restante em meras especulações esotéricas. Mas os autores não conseguem explicar claramente o que é verdade ou ficção. Em outro livro, sobre Gurdjieff, Louis Pauwels afirma que uma Sociedade Vril foi fundada pelo General Karl Haushofer, que teria sido discípulo do “mago” e metafísico russo Georges Gurdjieff. Mas Pauwels, depois, retratou-se de muitas afirmações feitas em relação a Gurdjieff.
Todas essas especulações serviram para cercar esta novela de uma aura de misticismo, a tal ponto que há quem se refira a ela como uma “obra iniciática”, reveladora de um segredo ocultado dos profanos durante milênios. Quem acredita nisso pode decepcionar-se com a sua leitura, mas aqueles que apreciam um bom texto de ficção, permeado de observações filosóficas e que nos oferece um vislumbre do seria uma sociedade perfeita, há de fazer bom proveito deste livro.
Profecia
O tom de elegia, de reverência inicial a esta civilização superior à humana em todos os sentidos dá lugar, ao final da obra, a um sentimento de desolação e Lytton a encerra com um alerta, prevenindo-nos que um dia a nossa raça, talvez em decorrência de nossa própria inaptidão para assimilar uma ética superior e viver em harmonia com o bem coletivo, poderá ser varrida da face da terra. Pela ótica de Lytton não há, pois, motivos para saudar o advento dessa nova raça. O nazismo, com seu culto à superioridade da raça ariana, que o diga...
Bira Câmara
(Prefácio da edição brasileira de "A Raça Futura", tradução de Júlia Câmara)
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ResponderExcluirÓtima resenha. Publiquei recentemente observações minhas sobre este livro no meu blog www.lusosp.blogspot.com Abraços.
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