Vril, o poder da Raça Futura

Lord Edward George Bulwer-Lytton (1803-1873) é conhecido pelo público brasileiro como o autor de “Os Últimos Dias de Pompéia” (1834), um grande clássico da literatura inglesa e, sobretudo, pelo romance ocultista “Zanoni” (1842), que teve incontáveis reedições no Brasil. 

Texto de Bira Câmara

Nasceu em Londres, em 25 de maio de 1803, numa família aristocrática e já compunha versos desde os dez anos de idade. Estudou em Cambridge, onde se destacou como poeta e dramaturgo; em 1831 ingressou na política e foi ministro de Assuntos Exteriores, aproveitando para fazer contato com sociedades secretas chinesas. Seu habilidoso trabalho na política lhe valeu o título de Primeiro Barão de Lytton.

Além de político destacado, foi também ocultista praticante, interessado nos mais diversos fenômenos paranormais e seu interesse pela magia e pelo espiritualismo o levaram a conhecer o célebre ocultista francês Eliphas Lévi. A Sociedade Rosacruz Inglesa, fundada em 1867 por Robert Wentworth Little, elegeu Bulwer-Lytton como “Grande Patrono“, mas ele escreveu para a sociedade dizendo-se ”extremamente surpreso“ por este título e recusou-o. No entanto, muitos grupos esotéricos têm reivindicado a filiação de Bulwer-Lytton, principalmente porque alguns de seus escritos, como”Zanoni”, contém noções esotéricas e rosacrucianas. Diz-se também que teria sido membro da Irmandade Hermética de Luxor, ultra-secreta sociedade rosacruciana que, segundo autores esotéricos, teve um papel importante na política, na cultura e no espiritualismo do Século XIX. Mas em público, o escritor não costumava falar de sua relação com os fenômenos psíquicos, embora na sua autobiografia encontrem-se referências ao médium Douglas Home e a algumas sessões espíritas, junto com o seu filho. Nada mais natural, portanto, que o misticismo e o sobrenatural tenham inspirado várias obras do novelista, em especial  “Zanoni”, “Uma estranha história” e “A casa e o cérebro”.

Estranhamente, os editores brasileiros ignoraram até agora uma de suas obras mais curiosas, Vrill, the Power of the Coming Race. Atraído pelo gênero fantástico nas suas diversas vertentes, Lytton publicou esse romance em 1871, no célebre “Blackwood’s Magazine”, uma obra que tem a originalidade de abordar assuntos que se tornariam correntes na ficção-científica. Em muitos aspectos trata-se de um texto antecipador, abrangendo temas que vão do feminismo, passando por reformas políticas e sociais, e a invenções tecnológicas. Pode-se estabelecer um elo entre a obra de Lytton e a “Utopia”, de Thomas More e, sobretudo, com alguns textos de Júlio Verne e H.G. Wells. O mito da Atlântida, a existência de prodigiosas forças eletromagnéticas, as potencialidades da ciência e da tecnologia, a adoção de modelos sociais avançados – tudo isso permeia a história dessa “raça futura” que, um dia, surgindo das profundezas da terra, dominará o mundo.


Uma utopia socialista

A tentativa de conceber uma sociedade utópica seduziu muitos pensadores e novelistas de mérito universal reconhecido ao longo do tempo, desde a República de Platão, passando por Thomas Morus com a sua Utopia, por Bacon com a Nova Atlântida, e Campanella e sua Cidade do Sol.


No mundo utópico de Lytton, o ideal socialista foi plenamente alcançado; ali reina a igualdade absoluta e a harmonia não só entre homens e mulheres, mas também entre as classes sociais. O mais humilde cidadão goza da mesma consideração de um magistrado supremo. Não há vaidade, egoísmo, culto à personalidade ou amor à fama. Os mais elevados cargos da comunidade não trazem consigo privilégios nem vantagens pecuniárias. Todo cidadão coloca o bem estar da comunidade acima de tudo, até mesmo da sua própria sobrevivência. Não há pobres, pois uma carga tributária intolerável numa sociedade como a nossa, é usada sabiamente de modo a prover as necessidades básicas dos menos afortunados. Tudo isso lembra as mais caras aspirações depositadas pelos filósofos num regime socialista, mas Lytton não é tão ingênuo ao ponto de acreditar que apenas um credo político poderia fazer funcionar uma sociedade tão perfeita. Ele sabe que este tipo de sociedade só pode dar certo com homens também perfeitos, tanto do ponto de vista ético, moral, intelectual como racial. E a base metafísica e religiosa que sustenta este mundo é a crença geral num ser supremo e a certeza de uma vida melhor após a morte, sem discussões ou considerações sobre o além. Aliás, os habitantes desse mundo subterrâneo (que poderia muito bem ser em outro planeta ou dimensão, dadas as suas diferenças em relação ao nosso mundo), depois de séculos de guerras e querelas filosóficas, científicas e religiosas, chegaram à sábia conclusão que discussões metafísicas só levam a disputas inúteis, perda de tempo e guerras, concluindo pela absoluta impossibilidade de conhecer os atributos da divindade e o que existe depois da morte. Portanto, alcançaram a paz absoluta abolindo tais discussões e dedicando-se apenas a atividades utilitárias, em prol do bem estar geral.

Há um tom velado de ironia em algumas passagens da obra; assim, a teoria aceita pela raça do mundo subterrâneo sobre a sua origem é um evolucionismo abstruso: este povo acredita descender das... rãs! Em mais de um trecho fica evidente o atraso da nossa civilização, simplesmente pela descrição de outra que chegou às raias da perfeição. Aliás, esta é a tônica da obra e aí está, verdadeiramente, a ameaça que pesa sobre nossas cabeças, ao perpetuarmos esta civilização belicosa, individualista, injusta e desumana, que poderá arrastar-nos mais cedo ou mais tarde à destruição...


Outro detalhe da sociedade descrita por Lytton, e que lhe dá um cunho verdadeiramente antecipador e moderno, são as relações entre os sexos; mas ele vai mais além da simples igualdade: a mulher é o sexo forte, e quem toma a iniciativa da conquista, em assuntos amorosos.

Lytton abusa de descrições detalhadas sobre a organização social, o regime político, a estrutura da língua desse povo subterâneo, com tanta ênfase que quase somos levados a crer que se trata de algo que o autor viu com seus próprios olhos. Muitas das comodidades modernas são descritas nesta novela: elevadores, aeroplanos, música ambiente, autômatos, máquinas agrícolas, veículos automotores; há até um capítulo dedicado à forma mais civilizada de lidar com a morte: a cremação de cadáveres... O próprio vril parece uma antecipação da energia nuclear, que ainda hoje a humanidade não aprendeu a usar com sabedoria. Uma das poucas antevisões desta novela ainda parece distante: a realização de um dos mais antigos sonhos do homem: a de voar como os pássaros. Perto das asas do povo subterrâneo movidas pela energia do vril, nossas asas deltas e ultra-leves com motor à explosão parecem engenhos rudimentares e primitivos...


Graças a esse talento visionário, há quem acredite que A Raça Futura seria mais do que uma obra de ficção, mas o relato de alguém que teria de fato conhecido esse mundo oculto... O livro foi bastante popular no final do século 19, e a palavra Vril chegou a ser associada a “elixires da vida.” 


O conceito de Vril recebeu um novo impulso pelo autor francês Louis Jacolliot (1837-1890), que foi cônsul francês em Calcutá. Em Les Fils de Dieu (1873) e Les Traditions Indo-européennes (1876), Jacolliot alega que encontrou Vril entre os jainistas em Mysore e Gujarat. No século XX, o Vril também foi incorporado a teorias sobre discos voadores nazistas.


Muitos comentaristas convenceram-se de que a idéia do fictício Vril foi baseada em uma verdadeira força mágica. Helena Blavatsky, a fundadora da Teosofia, endossou essa visão em seu livro Isis sem Véu (1877) e novamente em  Doutrina Secreta (1888). Para Jacolliot e Blavatsky, a energia Vril dominada por uma elite humana é parte de uma doutrina mística de uma raça desconhecida de nós. No entanto, o caráter do povo subterrâneo foi transformado por eles e, em vez de potenciais conquistadores, estranhamente tornaram-se benevolentes guias espirituais... Quando o teosofista William Scott-Elliot descreve a vida na Atlântida em The Story of Atlantis & The Lost Lemuria (1896), o avião dos atlantes é movido pela energia Vril. Obviamente, ele não considerou a descrição como ficção, e seus livros ainda são publicadas pela Sociedade Teosófica.

 
Mundo Subterrâneo

É curioso que Bulwer-Lytton ambiente a trama da ação de seu romance num mundo subterrâneo (o clássico Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne, foi publicado em 1864), mas a crença neste mundo, por mais absurda que pareça, ainda hoje tem adeptos, haja visto a existência de vários livros sobre o tema. A referência a esse povo imaginário pode ser encontrada nas obras de Saint-Yves d’Alveydre (Mission de L’Inde en Europe), de René Guénon (O Rei do Mundo) e principalmente n’A Terra Oca de Raymond Bernard. Estes autores abordam a lenda segundo a qual, antes do dilúvio que submergiu a velha Atlântida, os seus sábios sacerdotes, prevenidos da próxima catástrofe, conduziram os sobreviventes do seu povo para o interior da Terra. Assim, a civilização da Atlântida permaneceu não só intacta, como desenvolveu-se até aos nossos dias. Tanto no Oriente como no Ocidente, os mitos, as lendas e o folclore de todos os povos deixaram registros desse acontecimento. Desde a mais remota antiguidade, há referências a uma terra sagrada, a um mundo subterrâneo que é a moradia dos deuses, o Éden da eterna felicidade, chamado por alguns de Shamballa ou Agartha. No Brasil, muitos místicos e teosofistas acreditam piamente nisso, apoiando-se em certas profecias que asseguram que, quando chegar a hora, esta raça de homens superiores, de seres evoluídos e forjados por milênios de civilização ininterrupta, virá instalar-se nos continentes à superfície do Terra. O lendário coronel Fawcett, inspirado por esse mito, desapareceu nas selvas brasileiras em busca dessa civilização perdida...


A verdade é que A Raça Futura acabou dando origem a um mito que foi sendo enriquecido ao longo do tempo por novos relatos, desde que veio à público no século XIX. Assim, o aventureiro polonês Ferdinand Ossendowsky descreve em seu livro “Bestas, Homens e Deuses” (Londres, 1923, p. 313-314) o relato de uma visita do  “Rei do Mundo” (que mora na cidade subterrânea de Agartha...) ao mosteiro tibetano de Narabanchi em 1890. Em uma profecia feita ao Dalai Lama, ele teria previsto uma sucessão de horrores para o próximo século, ao final dos quais “o povo de Agartha vai deixar suas cavernas e aparecer na superfície da Terra”. Baseados na suposta profecia do Rei do Mundo, alguns autores acreditam que a invasão desse povo subterrâneo ocorrerá em 2029. A lenda ganhou reforço adicional graças a autores recentes, como Raymond Bernard, que misturou a idéia de A Raça Futura de Bulwer-Lytton  com especulações sobre civilizações que vivem no interior da Terra oca. Aliás, o conceito da Terra oca foi defendido pela primeira vez por Sir Edmund Halley no final do século XVII. Em contrapartida, na obra de Bulwer-Lytton, esse povo morava em cavernas subterrâneas na crosta da terra sólida e o mundo dos Vril-ya é sempre descrito como túneis subterrâneos, com iluminação artificial graças ao Vril. O livro não contém nenhuma referência a uma terra oca e as teorias desse tipo só foram elaboradas em obras posteriores, por outros autores que seguiram na sua esteira.

As especulações sobre o Vril não cessaram até hoje, o que prova o impacto provocado pela obra de Lytton, embora o assunto não tenha sido mais abordado pela Sociedade Teosófica. Um autor alemão chamado Wilhelm Landig ligou o Vril a supostos discos voadores nazistas e a uma fantasiosa fuga de dirigentes nazistas à Antártida...


Em 1960, Jacques Bergier e Louis Pauwels relataram a existência de uma Sociedade Vril, no livro Despertar dos Mágicos. Segundo eles, o Vril Society era uma comunidade secreta de ocultistas na Berlim pré-nazista, mas na verdade esta sociedade seria apenas uma espécie de círculo de estudos interno da Sociedade Thule. Há, também, a suposição de que mantinham estreito contato com o grupo inglês conhecido como Ordem Hermética da Golden Dawn. As informações sobre o Vril ocupam cerca de um décimo do volume, constituindo-se o restante em meras especulações esotéricas. Mas os autores não conseguem explicar claramente o que é verdade ou ficção. Em outro livro, sobre Gurdjieff, Louis Pauwels afirma que uma Sociedade Vril foi fundada pelo General Karl Haushofer, que teria sido discípulo  do “mago” e metafísico russo Georges Gurdjieff. Mas Pauwels, depois, retratou-se de muitas afirmações feitas em relação a Gurdjieff.


Todas essas especulações serviram para cercar esta novela de uma aura de misticismo, a tal ponto que há quem se refira a ela como uma “obra iniciática”, reveladora de um segredo ocultado dos profanos durante milênios. Quem acredita nisso pode decepcionar-se com a sua leitura, mas aqueles que apreciam um bom texto de ficção, permeado de observações filosóficas e que nos oferece um vislumbre do seria uma sociedade perfeita, há de fazer bom proveito deste livro.


Profecia

E já que falamos em profecias, numa das passagens de sua obra, Bulwer-Lytton põe na boca de Zee, uma das mais belas personagens da sua história, estas palavras proféticas: “Em nossos livros antigos há uma lenda, muito popular no passado, segundo a qual fomos expulsos de uma região que parece ter sido o mundo [da superfície], a fim de aperfeiçoarmos a nossa condição e alcançar o mais puro refinamento da nossa espécie por meio das terríveis batalhas que os nossos antepassados tiveram de travar e que, quando a nossa educação estiver finalmente concluída, estamos destinados a retornar ao mundo superior e a suplantar todas as raças inferiores que hoje o povoam.”  

O tom de elegia, de reverência inicial a esta civilização superior à humana em todos os sentidos dá lugar, ao final da obra, a um sentimento de desolação e Lytton a encerra com um alerta, prevenindo-nos que um dia a nossa raça, talvez em decorrência de nossa própria inaptidão para assimilar uma ética superior e viver em harmonia com o bem coletivo, poderá ser varrida da face da terra. Pela ótica de Lytton não há, pois, motivos para saudar o advento dessa nova raça. O nazismo, com seu culto à superioridade da raça ariana, que o diga...

Bira Câmara
(Prefácio da edição brasileira de "A Raça Futura", tradução de Júlia Câmara)

2 comentários:

  1. Ótima resenha. Publiquei recentemente observações minhas sobre este livro no meu blog www.lusosp.blogspot.com Abraços.

    ResponderExcluir