Pagãos versus Cristãos, uma polêmica do século II

Pouco conhecido nos dias de hoje,
Discurso Contra os Cristãos de Celso, escritor latino do século II d.C., é um texto fundamental para quem estuda religião comparada e a história do cristianismo.


O Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos foi escrito por volta do ano 178. Seu autor, o filósofo romano Celso, escreveu-o numa época de intensa atividade religiosa, quando começavam a travar-se os primeiros duelos literários entre os cristãos e os pagãos cultos. Sua obra não só combatia o cristianismo, mas procurava demonstrar que os cristãos estavam errados ao se negarem a praticar a religião tal como a encontraram. 

Os pagãos educados sentiam-se satisfeitos com o seu universo e, de modo geral, acreditavam viver no melhor dos mundos. Nos séculos II e III circulavam moedas com a legenda: Providentia deorum (“os deuses olham por nós”). O homem médio adorava as múltiplas divindades e acreditava que os deuses cuidavam da humanidade em geral, das cidades e indivíduos em particular. As pessoas esperavam que os deuses viessem em seu auxílio nos momentos de dificuldade e celebravam ritos considerados tão antigos como a própria humanidade. Ao abandonar estas práticas, os cristãos foram ferozmente atacados e acusados de provocar a ira dos deuses sempre que aconteciam catástrofes naturais ou o império via-se ameaçado pelas invasões bárbaras. 

Celso foi contemporâneo e amigo de Luciano de Samósata, que o apresentava como grande defensor da verdade e inimigo dos fantasmas da superstição e de todas as crenças vãs.  Tinha grande antipatia pelos mágicos e introdutores de deuses falsos, e foi a seu pedido que Luciano escreveu O Falso Profeta, baseado num certo Alexandre de Abonótica. Combatia a magia, muito mais para desmascarar o charlatanismo dos mágicos do que para denunciar a falsidade de sua arte. Repelia como fraudes a maior parte dos milagres e prestígios, mas admitia alguns. Mesmo sem acreditar nas lendas do paganismo, julgava-as úteis aos homens e achava legítimo o culto aos deuses. No seu tempo a magia era quase um dogma e as aparições dos mortos e os sonhos premonitórios coisas consideradas corriqueiras. Como homem de sua época, Celso aceitava a Providência, a adivinhação, os oráculos, a imortalidade da alma, as recompensas e castigos futuros como partes integrantes de uma doutrina do Estado. A sua filosofia religiosa era eclética e admitia todos os cultos; se o cristianismo não tivesse a pretensão de ser o único verdadeiro o aceitaria da mesma forma que as outras crenças. Celso julgava combater a superstição, mas sustentava crenças tão irracionais quanto as que condenava.

Na condição de súdito fiel do imperador, via a religião romana como verdadeira e necessária à manutenção da grandeza romana. Compartilhava da crença da época, segundo a qual cada nação tinha os seus deuses e era protegida por eles, enquanto fossem adorados pelo povo. Abandonar os seus deuses como os cristãos pregavam era, portanto, mais do que heresia: tratava-se de um suicídio. Assim, mesmo sendo obrigado a reconhecer as virtudes dos cristãos e a mansidão de seus costumes, encarava o cristianismo como um mal e atribuía o que havia de bom nas suas crenças ao que haviam copiado dos gregos.

Para escrever o Discurso Verdadeiro Celso leu e estudou profundamente os textos judeus e cristãos, conhecendo como nenhum outro escritor pagão o cristianismo e os livros em que se baseia. Infelizmente a obra não chegou até nós na íntegra, mas pôde ser reconstituída em parte, pelas citações e análises de Orígenes de Alexandria, o autor cristão que rebateu suas críticas em 248. Sem os oito livros que ele lhe consagrou quase um século depois, por meio da obra Contra Celso, com cerca de mil páginas, não saberíamos nada a respeito deste autor. Aliás, o próprio Orígenes sabia muito pouco a respeito dele e hesitava quanto à verdadeira identidade dos dois personagens com o mesmo nome. É graças a sua tentativa de refutação que o livro de Celso chegou até nós, embora o seu objetivo principal não fosse o de preservá-lo para a posteridade.

Discurso Verdadeiro teve pouca ou nenhuma repercussão quando foi publicado e só ficou conhecido setenta anos depois graças à curiosidade de Ambrósio, um sábio bibliófilo alexandrino que descobriu o livro e o mandou a Orígenes, pedindo-lhe que o refutasse. Paradoxalmente, foi graças ao zelo de um cristão que a obra de Celso sobreviveu...

Na época em que o Discurso foi escrito, o império romano havia juntado numerosos povos, adotando seus costumes e seus deuses, deuses que abarrotavam seu panteão a ponto de ser reservado um espaço ao “deus desconhecido”, por receio de se esquecer algum. Inúmeras religiões estrangeiras coexistiam em pé de igualdade com os cultos tipicamente romanos e uma delas, pela sua natureza viril – o Mitraísmo –, caiu na preferência da soldadesca e era tão popular que quase chegou a tornar-se a religião oficial do Império. Renan afirmou que se o Cristianismo não o tivesse suplantado, o Mitraísmo teria dominado o Ocidente. Mas outros autores põe em dúvida esta tese, pois o culto de Mitras era uma iniciação exclusiva para homens e isto seria um sério impedimento para torná-la universal.

As duas maiores objeções de Celso aos cristãos eram a sua pretensão de ser a única religião verdadeira e, portanto, de querer eliminar as outras, bem como a recusa de se comportar como cidadãos e cumprir o serviço militar. Ao afirmar que o “deus desconhecido” era o deles, o único verdadeiro, eles violavam a tolerância estabelecida e instauravam em Roma as guerras religiosas, que fariam deles as primeiras vítimas.

É extraordinário como, a partir de um meio restrito – a colônia judia –, se espalhou uma dissenção interna que causou tanta agitação a ponto de provocar a intervenção da autoridade romana. Sobre o que aparecia então como uma nova seita, os boatos eram abundantes: informações dadas pelos próprios cristãos para divulgar sua crença, a boataria local e as calúnias que Celso, como homem ponderado, citou sem levar a sério. Eles foram acusados de todos os crimes, incluindo o de comer criancinhas, acusações que já se faziam aos judeus e que sempre são feitas contra aqueles que se reúnem às escondidas. “Se eles se escondem é porque praticam o mal” e se acrescentava em geral tudo o que uma imaginação delirante poderia conceber, extravasando seus mais baixos instintos, indo de orgias sexuais ao homicídio de crianças para comê-las!

Para Celso, os cristãos, originários de um meio inculto se enganavam mesmo tendo costumes irrepreensíveis. E sentia-se cheio de compaixão por aqueles que se ofereciam ao sacrifício sem medo, acreditando que iriam ressuscitar.

O conhecimento de Celso dos textos bíblicos era tão profundo que Renan chega a atribuir-lhe o status de “doutor cristão pela sua erudição”:

“Sobre matéria de história religiosa, esclareceu-se-lhe o espírito com as viagens à Palestina, à Fenícia, ao Egito. Leu atentamente as traduções gregas da Bíblia, o Gênese, o Êxodo, os Profetas, e ainda Jonas, Daniel, Henoch, os Salmos. Conhece os escritos sibilinos e reconhece-lhes as fraudes, não lhe escapando a vaidade das tentativas de exegese alegórica. Entre os escritos do Novo Testamento, conhece os quatro Evangelhos canônicos e ainda outros, talvez os atos de Pilatos. Preferindo o de Mateus, verifica os retoques sofridos pelos textos evangélicos, sobretudo no ponto de vista da apologia.” (Renan, Origens do Cristianismo, pág. 232)

Assim, é com conhecimento do assunto que Celso se propôs a demolir as crenças judaico-cristãs, postulando uma fé que se fundamentasse na razão “e não tenha como base única o não querer ouvir a razão”. Segundo ele, tudo o que o cristianismo tem de bom, Platão e os filósofos antigos o disseram melhor antes dele. “As Escrituras são uma tradução, em estilo grosseiro, do que os filósofos, e especialmente Platão, disseram em magnífico estilo”.

Mas, apesar do estilo panfletário, o livro de Celso caiu no esquecimento e não conseguiu impressionar ninguém quando foi publicado. Os seus escritos perderam-se cedo e os escritores cristãos dos séculos II e III não fazem nenhuma referência a eles. No século IV, Juliano serviu-se da obra de Celso para reforçar os argumentos em favor da restauração do paganismo e no século XVIII Voltaire buscaria nela munição para sua crítica impiedosa ao cristianismo.

Discurso Contra os Cristãos

O texto que chegou até nós representa sete décimos da obra de Celso, palavra a palavra, e nove décimos da substância. Ao longo do tempo teve poucos, mas seletos admiradores como Voltaire, Renan, Niestzche e Anatole France. Os leitores de Niestzche, sobretudo, hão de reconhecer no Discurso Verdadeiro o parentesco com algumas passagens de Genealogia da Moral.

O Discurso é um documento que, lido em nossa época em que a civilização greco-romana deu lugar à judaico-cristã, ainda pode ser motivo para muitas reflexões. Da mesma forma que no passado, novas seitas nascem a cada instante colocando em xeque as religiões tradicionais e muitas das opiniões de Celso poderiam se aplicar à situação atual. Vivemos um momento histórico onde é fundamental exercer o espirito crítico, mas é também importante a abertura a outras formas de pensamento com uma atenção fraternal, seguindo o ponto de vista de Shelley:

“Todas as religiões são boas se elas permitem ao homem tornar-se melhor”


Referências bibliográficas:

1.Celso, Contra os Cristãos, Editorial Estampa, Lisboa/1971

2. D. Bowder, “Quem foi quem na Grécia Antiga”, Art Editora

3. Dicionário Prático Ilustrado, Lello & Irmão Ed.

4. Ernest Renan, “Marco Aurélio e o Fim do Mundo Antigo”, Lello & Irmão Ed.

5. H. G. Wells, História Universal, Cia. Ed. Nacional, 7ª Ed. 

6. Jean-Michel Angebert, Os Filhos Místicos do Sol, Difel/1976

7. Louis Rougier, Celse et le discours vrai, Edition J.J. Pauvert, Paris/1965

8. Lucien de Samosate, Oeuvres Completes, trad. de Émile Chambry, Garnier/1934

9. Mircéa Eliade, “História das Crenças e das Idéias Religiosas”, Zahar Ed.

10. Peter Brown, “O Fim do Mundo Clássico”, Editorial Verbo

11. Ruth Guimarães, Dicionário da Mitologia Grega, Cultrix

12. Tácito, Anais,W. M. Jackson Inc. Ed., 1957

13. Voltaire, Deus e os Homens, Ed. Cultura Moderna, S.P./1939



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