Serpentes, mensageiras do destino

Na cultura judaico-cristã a serpente simboliza o mal, o pecado, a traição, e ficou associada ao demônio, mas entre vários povos do mundo antigo era considerada um animal sagrado e profético por excelência.


Texto de Bira Câmara


Na antiguidade, os adivinhos consideravam os animais como intérpretes ou mensageiros do destino. Uma das primeiras ideias relacionadas à adivinhação que se apresentaram à mente do homem, encontrada em todos os povos, mesmo os mais selvagens, foi aquela que considerava a serpente como animal profético por excelência. Posteriormente a filosofia procurou justificar essa virtude adivinhatória, porque a serpente é, de todos os animais, a que mantém maior contato com a terra, fonte de toda inspiração.

Entre os semitas, não deixa de ser surpreendente que o nome da serpente e o verbo que designam a ação das práticas de adivinhação pertencem à mesma raiz (nahhasch). Os árabes da antiguidade acreditavam que ao comer o coração ou o fígado de uma cobra adquiriam o conhecimento da linguagem dos animais, e um documento cuneiforme fala de uma consulta sobre o futuro pelo coração de uma cobra. 

A serpente era um símbolo da ciência e inteligência sobrenaturais, e é por isso que o Gênesis diz que «era mais astuta do que todos os animais da Terra que Jeová havia criado». Entre os caldeus-babilônios e assírios, seus discípulos, a serpente era um dos principais emblemas de Ea, a inteligência suprema, o deus de toda a ciência. Na Epístola de Jeremias, ele conta sobre a imagens dos deuses: «Dizem que as serpentes nascidas na terra lambem seus corações.» A sentença em questão parece, portanto, relacionar-se com a circunstância de que em alguns dos templos da Babilônia serpentes eram criadas, servindo como intérpretes dos deuses e usadas para dar oráculos. No entanto, até hoje não se encontrou qualquer fragmento original dos livros augurais da Caldeia sobre os presságios fornecidos pelas serpentes. 

Basta lembrar a fábula de Cassandra para perceber a ideia profética que os antigos relacionavam à lambida pela lingua das cobras. A mitologia conta que Cassandra e o seu irmão gêmeo, Heleno, ainda crianças, foram brincar no Templo de Apolo, mas brincaram até ficar muito tarde para voltarem para casa, e por isso deram-lhes uma cama no interior do templo. Na manhã seguinte, enquanto ainda dormiam, duas serpentes passaram a língua pelas suas orelhas; como resultado desse incidente os ouvidos dos gêmeos tornaram-se tão sensíveis que passaram a escutar as vozes dos deuses. Cassandra tornou-se uma jovem de magnífica beleza, devota servidora de Apolo, e aconteceu que o próprio deus se apaixonou por ela e ensinou-lhe os segredos da profecia. No entanto, por se negar a dormir com Apolo, ele vingou-se lançando-lhe a maldição de que ninguém jamais acreditaria nas suas profecias ou previsões.

Em grego, o termo profetisa (Prophetis) significa: aquela que fala em vez de [deus], também chamada de pitonisa (Puthia Hieria, sacerdotisa Pítia). Seu nome vem da história de Apolo, cognominado Pítio em Delfos, porque foi ali que ele matou a serpente Python.

Os adivinhos e profetas da antiguidade alegavam o poder, entre outras virtudes milagrosas, de matar serpentes com uma... mordida. Um personagem mitológico, Ápis —, médico e adivinho —, livrou uma região infestada de serpentes ferozes e venenosas devorando-as, e, por isso, o lugar recebeu o nome de Ápia em sua homenagem. Não por acaso, era filho de Apolo, o deus que triunfou sobre a serpente. E Apolo era o deus vidente por excelência. 

Diferente dos outros deuses da Grécia que jamais eram representados sob a forma de animais, Esculápio era frequentemente adorado na figura de uma serpente que era alimentada em seu santuário em Epidauro, e representado segurando um bastão com uma cobra enrolada. O papel da serpente no culto do deus médico está relacionado, por certo, às ideias simbólicas que os gregos associavam a este réptil, que chamavam dragão. A propriedade que ele tem de mudar de pele significava para eles o símbolo da saúde, de retorno à vida. Atena, que também era adorada pelos atenienses como uma deusa médica, tinha igualmente por símbolo a serpente.

A serpente na mitologia


Conta a lenda que Zeus seduziu Olimpia, a esposa do rei Felipe da Macedônia, introduzindo-se no seu leito sob a forma de serpente. Desta cópula foi gerado Alexandre, o Grande.

Outro personagem lendário, o gênio Sosipolis (*) também era cultuado entre os eleatas na forma de uma serpente. Uma velha estava ligada ao seu serviço e todos os dias colocava bolos amassados ​​com mel e farinha diante de seu altar, e esse costume não era exclusivo dos eleatas. Vários baixos-relevos antigos representam o gênio do lugar aparecendo na forma de um réptil, para comer os bolos colocados em seu altar. Esse respeito pelas cobras, esse culto que se lhes prestava foi encontrado em um grande número de populações indo-europeias. Ainda havia vestígios dele no século dezoito na Polônia.

Pitágoras dizia ter encontrado no Hades, quando lá desceu, Homero amarrado a uma árvore e Hesíodo preso a uma coluna, mordidos por uma cobra,  em punição por que falaram mal dos deuses.

A serpente era considerada entre os gregos antigos como um meio de adivinhação. Segundo o autor do tratado sobre astrologia, atribuído a Luciano, uma cobra era colocada sob o tripé de Pítia em Delfos. Sabe-se que, em muitas populações selvagens, esse réptil desempenha um grande papel em encantamentos e operações divinatórias. Também vemos a serpente figurando no início dos mitos associados ao estabelecimento de oráculos. Iamus, o ancestral dos Iamidas, passava por ser um filho de Apolo e uma ninfa da Arcádia chamada Évadné, e filha de Poseidon. Diz a lenda que este Iamus deve esse nome ao fato de ter nascido na pétala de uma violeta, onde duas cobras vinham para alimentá-lo, e que Apolo, seu pai, o levou para o Olimpo, onde lhe transmitiu o duplo dom de entender as vozes do ar e fazer predições nos sacrifícios a Zeus, inspecionando as entranhas das vítimas.

Tirésias, a quem a deusa Atena havia dado a inteligência da linguagem dos pássaros, encontrou um dia, no monte Cilene, duas cobras que lhe deram o poder de mudar de sexo. O adivinho Mopso morreu na Líbia pela picada de uma cobra. Da mesma forma, conta a lenda que Mélampus devia sua virtude profética a duas cobras que ele salvou da morte e que lamberam seus ouvidos. Os mesmos répteis também desempenham um papel na lenda do adivinho Poliïdus de Argos, também hábil em entender a linguagem dos pássaros. Nesta última lenda, a serpente aparece com o caráter de uma divindade médica e profética. Ela carrega a grama que deve dar vida a Glaucus, filho de Minos. 

A arte da medicina e a adivinhação estavam intimamente ligadas na origem, e essa conexão continuou com os feiticeiros da Idade Média, que enviavam ou curavam, como bem entendessem, as doenças.

Os primeiros adivinhos, por encantamentos em que a serpente participava naturalmente, pois sempre figuravam na primeira fila dos animais proféticos, alegavam expulsar a doença e, a partir daí, sem dúvida, a associação do culto à serpente com o de Esculápio. Segundo a lenda, Esculápio passou a dedicar-se à arte da cura após ver uma serpente ressuscitar outra com algumas ervas que trazia em sua boca. Esta é, inclusive, a origem do símbolo das ciências médicas: duas serpentes enroladas num bastão. Em  Epidauro venerava-se uma serpente que era vista como a imagem de Deus; e o réptil transportado desta cidade para Sicyone, como mais tarde para Roma, entrou em uma carruagem puxada por mulas. No templo de Esculápio, em Titano, as cobras também eram criadas em homenagem à divindade. Mais tarde, sob a influência de ideias simbólicas que penetraram na religião, explicou-se a virtude profética do réptil pelo fato de estar em contato mais imediato com a terra, fonte de toda inspiração.

A mitologia grega fala também de Óphion (**), deus-serpente, como o próprio nome indica, precipitado com seus companheiros no oceano ou no Tártaro, por Cronos, que o derrotou. Encontramos ai um reflexo da personificação do mal na forma da serpente como registrada no Gênesis. A mitologia védica nos fornece, na luta de Indra e Ahi, uma imagem bastante semelhante à do mito grego.

No mito de Laocoonte, sacerdote de Apolo, a desobediência ao deus faz com que o mesmo envie duas grandes serpentes a fim de matá-lo. Também o grande herói da mitologia grega, Hércules, enfrentou a Hidra, monstro com corpo de dragão e nove cabeças de serpente.

Segundo alguns autores, a serpente é um símbolo da divinação porque sente mais rapidamente do que os outros animais as mudanças que se operam na atmosfera. Já os habitantes de algumas ilhas na Oceania acreditavam que o Ser supremo tinha a forma de uma serpente e morava em certas grutas. As serpentes também eram vistas como divindades familiares e domésticas por inúmeras populações indo-europeias, que representavam em monumentos seus gênios locais sob a forma de serpentes. Os antigos habitantes da Lituânia alimentavam as serpentes em sua casas, às quais, em certas datas, faziam sacrifícios e ofereciam alimentos, tirando os presságios pela maneira como estes répteis os aceitavam.

A serpente também era considerada um símbolo da agricultura e da germinação, porque se arrasta sobre a terra e troca de pele, assim como a semente.

Fontes:

Alfred Maury, Histoire des religions de la Grèce antique, tomos I e II, 1855
François Lenormant, La divination et la science des présages chez les Chaldéens, 1875
René Alleau, Encyclopedie Universalis, verbete Oráculo
Ruth Guimarães, Dicionário da Mitologia Grega, Cultrix

Salomon Reinach, Cultes, Mythes et Religions, volumes II e III

Thomas Bulfinch, O Livro de Ouro da Mitologia, Ediouro

Notas:

(*) Ofiúco ou Esculápio, na mitologia grega, corresponde a Asclépio, filho do deus Apolo e da mortal Corônides. Desenvolveu grande habilidade na medicina e acreditava-se que tinha poder de ressuscitar os mortos. Ofendido, Hades pediu a Zeus que o matasse, por violar a ordem natural das coisas — e Zeus concordou. No entanto, como tributo a seu valor, decidiu colocá-lo no céu rodeado por uma serpente, símbolo da vida que se renova.

(**) SOSIPOLIS, deus dos Eleatas. Pausânias conta que os Arcadianos fizeram uma grande invasão na Élida, e seus habitantes avançaram contra eles para evitar a captura de sua capital. Quando estavam prestes a travar a batalha, uma mulher se apresentou aos chefes do exército, carregando entre os braços uma criança recém nascida, e disse-lhes que havia sido avisada em um sonho que essa criança lutaria por eles. Os generais acreditaram que o conselho não deveria ser negligenciado; colocaram este menino à frente do exército e o expuseram nu; na hora do combate, essa criança de repente se transformou em uma serpente, e os arcadianos ficaram tão assustados com essa maravilha que fugiram; os eleatas os perseguiram, fizeram uma grande carnificina e obtiveram a vitória. Como a cidade foi salva, seus habitantes deram o nome de Sosipolis a essa criança maravilhosa, construíram um templo para sua glória e instituíram uma sacerdotisa exclusiva para presidir seu culto. (Encyclopédie, ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, Tome XV, MDCCLX)

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