Apocalipse: um cavalo de tróia no Cristianismo?

Um livro publicado em 1832 comprova que o Apocalipse nada mais é do que um pastiche de profecias tiradas do Velho Testamento, junto com elementos da simbologia astrológica dos caldeus. Apesar da resistência de muitos doutores que suspeitaram da identidade do seu verdadeiro autor e de sua matriz pagã, ele  acabou se tornando texto canônico da Igreja, inspirando os mais desvairados delírios milenaristas ao longo do tempo.Pode-se afirmar com razoável grau de certeza que o Apocalipse é um corpo estranho ao Novo Testamento, verdadeiro cavalo de Tróia introduzido nele por um suposto profeta que se fez passar por São João evangelista. Entre os primeiros cristãos, muitos doutores da Igreja ignoraram o texto, alguns o criticaram e até o refutaram integralmente, considerando-o destituído de sentido e de razão. Houve quem atribuísse a sua autoria ao gnóstico Cerinto (c. 100).


Texto de Bira Câmara



A palavra apocalipse tem origem no termo grego apo­kálypsis, que significa revelação ou ato de descobrir. Em sentido figurado também pode referir-se a um discurso obscuro ou a um cataclismo. Um apocalipse é, portanto, uma revelação sobre acontecimentos ocultos ao conhecimento dos homens, o relato feito por um privilegiado, de uma visão da qual ele é a única testemunha ou, ao menos, que foi o único a perceber. Composições desse gênero foram numerosas na literatura judaica, mas é provável que suas origens remontem à Fenícia e à Caldeia.

O judaísmo desenvolveu uma literatura apocalíptica baseada em supostas visões que seriam presságios de catástrofes que esta­riam por vir, e quanto maior o sofrimento do povo judeu mais aumentava a certeza de que o presente ciclo ou eon chegaria ao fim, com a consequente salvação. Essa literatura era considerada uma «ciência sagrada, de essência e origem divinas». (1) Nas palavras do profeta Daniel, «é Deus» que dá aos sábios a sabedoria, e é Ele que revela as coisas profundas e escondidas, e que conhece o que está nas trevas». (Daniel, 2:20-22)

Os profetas Daniel e Enoque receberam a ciência sagrada através de sonhos e visões. Teriam sido os anjos que os instruíram nos misté­rios celestes e o próprio Deus lhes mostra as tabuinhas em que a história universal está escrita. No início dos tempos, Deus revelara a ciência sagrada a homens privilegiados, reconhecidos pela devoção e pelas faculdades visionárias, e essa instrução era inacessível aos profanos.

Nos apocalipses judaicos, assim como em outras tradições, o fim do mundo é precedido por muitos cataclismos e fenômenos celestes excepcionais; as estrelas sairão de suas órbitas, o sol brilhará durante a noite e a lua durante o dia, as entranhas da terra vomitarão sangue, o sangue verterá das árvores, o tempo correrá mais rápido, haverá seca e fome, os homens se matarão uns aos outros, etc. E assim como na tradição iraniana, haverá a ressurreição dos mortos e o juízo universal.

O cristianismo primitivo também produziu alguns textos apo­calípticos, um atribuído a São João, outro a São Pedro, e o Apo­ca­lipse de Esdras, cujos destinos foram bem diferentes. Todo mundo conhece o de João de Patmos, que alguns autores acreditam ser o «eco da perseguição contra os cristãos e judeus dirigidas por Nero no ano 64». Outros consideram esse livro como ante­rior aos Evangelhos, do qual se diferencia tanto no estilo como no conteúdo. As divergências quanto a datas acontecem porque, como o reconhece Renan «não há um único texto do cânone bíblico cuja data se possa fixar com precisão».

Pode-se afirmar com razoável grau de certeza que o Apocalipse é um corpo estranho ao Novo Testamento. Entre os primeiros cristãos, muitos doutores da Igreja ignoraram o texto, alguns o criticaram e até o refutaram integralmente, considerando-o destituído de sentido e de razão. Houve quem atribuísse a sua autoria ao gnóstico Cerinto (c. 100), que teria usado o nome de São João para dar mais credibilidade ao texto. Este Cerinto apareceu logo após a morte dos apóstolos. Um autor latino que viveu por volta do ano 200, o padre Caïus, acreditava que Cerinto era o verdadeiro autor do Apocalipse, por defender a ideia de que após a sua ressurreição haveria o reino de Cristo sobre a terra, e que os homens gozariam os prazeres do corpo em Jerusalém, que passariam 1000 anos em celebração, etc.

No fim do segundo século, o Apocalipse foi reconhecido pela Igreja do Ocidente, junto com o de Pedro, mas na mesma época o texto de São João foi excluído dos cânones da Igreja do Oriente. Ainda no século IV não havia concordância quanto a autoridade dessa revelação. Um pouco depois ela foi admitida pela Igreja, enquanto que o texto de São Pedro foi rejeitado e considerado como apócrifo, deixando de ser copiado por volta do século IX até mesmo no Oriente; e desapareceu sem deixar outros vestí­gios a não ser alguns fragmentos conservados por autores eclesiásticos. Somente no século XIX foi descoberto um fragmento considerável do mesmo, na tumba de um monge egípcio. (2) Em 1910, foi descoberta outra versão do texto em uma tradução etíope, que foi pesquisada por Sylvain Grebaut e publicada na íntegra vários anos depois. 

O Apocalipse de Pedro está estruturado como um discurso de Cristo ressuscitado aos seus fieis, e oferece uma visão primeiro do Céu e depois do Inferno ao apóstolo Pedro. Com riqueza de detalhes, descreve as punições do Inferno para cada tipo de crime, visões que posteriormente Hieronymus Bosch reproduziu em suas telas, e os prazeres concedidos no Céu para cada virtude. Esse texto, escrito por volta do ano 100 d.C., intelectualmente simples e com tons helenísticos, não produziu o mesmo impacto que o Apocalipse de João.

Já o texto de Esdras, datado entre os anos de 96, 97 e 98, é considerado uma imitação do Apocalipse de João, empregando a mesma simbologia e linguagem obscura. No entanto, se é posterior ao texto do profeta João estas datas não coincidem com a que é afirmada tanto por Charles Dupuis quanto por Jean Andrè de Luc, que chegaram à conclusão que o Apocalipse teria sido produzido no início ou em meados do século II. Nos séculos seguintes surgiram ainda outros textos da mesma natureza, além de vários comentaristas que fizeram interpretações do livro.

Quanto ao Apocalipse de João, quase todos os intérpretes antigos e modernos que tentaram interpretá-lo fracassaram, pois para essa tarefa é preciso conhecer a fundo não só os livros do Antigo Testamento, os acontecimentos históricos da época em que foi escrito, mas também a teologia astrológica dos Orientais e os mitos das religiões dos pagãos. 

Se os eruditos jamais conseguiram decifrar os enigmas contidos nesse texto, muitos concordam em vários pontos: primeiramente, o seu autor não foi o apóstolo João, o evangelista, mas alguém que viveu no final do primeiro século ou início do segundo; o texto refere-se a eventos que deveriam acontecer num futuro próximo; a Besta de sete cabeças que aparece no texto representa o Império Romano e suas cabeças relacionam-se aos sete primeiros imperadores romanos; a figura do anticristo é claramente calcada em Nero; o texto está repleto de uma simbologia astrológica caldaica; e por último, seu autor imitou ou se inspirou nos profetas do Velho Testamento. Portanto, estão errados aqueles que supõem que o Espírito Divino ditou ou inspirou as visões contidas no Apocalipse, pois se Deus quisesse esclarecer os homens e anunciar o futuro, não teria falado numa linguagem não apenas obscura, mas incompreensível. E, na verdade, o Apocalipse não encerra nenhuma profecia que tenha se cumprido ou que se cumprirá, e seria uma tarefa inútil buscá-las.

LUZES SOBRE O APOCALIPSE

de Jean André de Luc 

Tradução e prefácio de Bira Câmara

172 págs., formato 13,5 X 20,5 cm.
Jean André de Luc, autor de Luzes sobre o Apocalipse, obra altamente esclarecedora sobre esse texto, afirma que «as dificuldades insuperáveis que se encontra, quando se pretende fazer a interpretação das visões do Apocalipse, em grande parte, vêm de que tem sido procurado ali o que não existe, isto é profecias sobre os seres humanos ou eventos terrestres, que deveriam acontecer nos séculos seguintes». Essas profecias, ou melhor, essas visões foram dirigidas aos homens que viviam naqueles tempos, e só visavam a eles; elas aconteceriam em breve; o tempo estava próximo, e ainda assim elas nunca se realizaram: é em vão que os iniciados esperam o aparecimento da Nova Jerusalém; em vão eles esperam os juízos de Deus e os efeitos da sua ira. O autor, para descrevê-las, emprestou do An­tigo Testamento os eventos que se passaram muitos séculos antes dele. O Apocalipse é um livro puramente de imaginação e foi inventado a partir de imitações. Todas as suas visões foram criadas pela imaginação do autor, ou imitadas do Antigo Testamento e, portanto, copiadas. 

No Apocalipse tudo se refere a um mundo problemático; tudo acontece no céu ou no fogo do inferno, em regiões sobre as quais temos poucos dados positivos. As pragas, frequentemente muito exageradas, anunciadas para a terra, são aquelas que sempre afligem a humanidade todos os anos, em algum canto da terra; de maneira que determinar em que ano, em que século deverão acontecer, é uma busca infrutífera. O Espírito Santo, portanto, é muito estranho à composição do Apocalipse...

Origem pagã do Apocalipse


As fontes pagãs do texto apocalíptico foram destacadas por Charles Dupuis (1742-1809), que no sexto volume de seu livro Origem de todos os cultos, defende a tese de que o Apocalipse é uma obra frígia, cujo conteúdo relata a doutrina apocalíptica dos iniciados nos mistérios da luz e do sol equinocial da primavera, sob o signo do Carneiro ou de Áries, o primeiro dos doze signos. A religião frígia, diz ele, comemorava anualmente o triunfo perió­dico da Luz sobre o princípio das Trevas, do dia sobre a noite. Todos os anos, quando o sol, que abriga a luz divina, no equinócio vernal chegava ao Carneiro — o signo de sua exaltação —, esta efeméride lembrava aos iniciados o grande triunfo que deveria acontecer no final dos tempos, quando o princípio do mal e a Terra que ele habitava seriam destruídos, cedendo lugar a Ormuzd, que deveria reinar exclusivamente sobre as ruínas do antigo mundo. O Apocalipse é, pois, segundo Dupuis, um sermão da festa da Páscoa do cordeiro. Sabe-se, pelo Concílio de Toledo na Espanha, que havia o costume de se ler o Apocalipse em público durante todo o período em que o sol atravessava o signo de Áries, ou seja, da Páscoa até o Pen­tecostes.

Infelizmente, os astrólogos caldeus e persas não deixaram obras sobre o seu sistema teológico, que forneceria, sem dúvida, a chave para as visões e a origem da forma enigmática de des­crever e prever eventos usada pelo autor do Apocalipse. Mas se a origem das representações simbólicas dos profetas pode ser reconhecida, por outro lado interpretá-las é tarefa bastante difícil, pois certas relações astronômicas se acham dissimuladas no texto. 

As correspondências entre o texto dos profetas do Velho Testamento e o do autor do Apocalipse são apontadas detalhada­mente por Jean André de Luc e são inquestionáveis.

Alguns estudiosos, como Renan, fazem referência aos fenômenos naturais ocorridos no ano 68, que tanto preocuparam o povo e justificava aparentemente os prodígios anunciados pelo Apocalipse. O primeiro século de nossa era foi pródigo em desastres, erupções vulcânicas, terremotos, pragas de gafanhoto, fenômenos astronômicos raros, epidemias, sem falar nas guerras. Por conta disso, Renan é levado a ver no texto do profeta João referências a acontecimentos da época. Assim, por exemplo, a Besta designada pelo número 666, seria o imperador Nero, cujas letras do seu nome, transcrito em hebreu, segundo o seu valor numérico, resultam no número 666. As suas sete cabeças representariam os sete imperadores romanos de Júlio César até Galba. Um poema sibilino composto dois séculos antes da era cristã já se referia ao poder romano como o «poder de numerosas cabeças».(3) Seus dez chifres coroados seriam as dez províncias, cujos procônsules eram como verdadeiros reis. A cabeça da Besta ferida de morte que se curou seria também Nero, pois após sua morte circulou o boato de que se salvara por milagre e reaparecera entre os Partos. Quanto à segunda Besta, «que tem os modos de um judeu piedoso e a língua de Satã», não é claramente identifi­cável; Renan supõe que poderia ser algum funcionário judeu dedicado aos romanos e tido como apóstata pelos seus compatriotas. Mas também, como taumaturgo e sedutor, essa figura poderia ser Simão o Mago, imitador de Cristo, adulador de Nero; ou ainda, seu astrólogo Balbílio que o incentivava nas suas loucuras e crueldades. A prostituta que aparece sentada sobre a besta, vestida de púrpura, coberta de ouro e pedras precio­sas, carregando um cálice cheio de abominações e impurezas, é a própria Roma, que corrompera o mundo.

Portanto, para Renan, o vidente que escreveu o Apocalipse deixou-se impressionar pelas perturbações que agitaram o império romano no ano 69, após a mor­te de Nero. Três imperadores, Galba, Óton e Vitélio sucedem-se no espaço de alguns meses; oito ou dez generais romanos detém as rédeas do império, o que levou os judeus à ilusão de que ele em breve se esfacelaria e Roma seria destruída. Tudo parecia confirmar as predições do profeta; o Capitólio foi incendiado, sangrentos combates foram travados nas ruas de Roma até a aclamação de Vespasiano. Mas logo vieram as decepções: houve a tomada de Jerusalém, a destruição do templo e a consolidação da nova dinastia instalada no império. Assim, as predições do livro prontamente se revelaram falsas: o autor anunciara que o Império Romano não se recons­tituiria e que o templo não seria destruído, assim como Nero, a Bes­ta, reapareceria...

Renan não faz referência à obra de Jean André de Luc, o que nos leva a achar que não a conheceu. (4) É provável que tenha sido ignorado pelos teó­logos e estudiosos da literatura apoca­líptica por ter se baseado em grande parte na obra de Dupuis, que ficou marcada como antirreligiosa. (5) Até mais ou menos 1825, o seu livro Origem de Todos os Cultos foi muito lido pela burguesia exatamente por esse motivo; mas em meados do século dezenove caiu no esquecimento pela mesma razão... O espírito do século XVIII, anti­católico, anticristão, estava presente nele, e quando ventos conservadores passaram a soprar na França tornou-se, então, fora de moda.

Dupuis acreditava em um Deus impessoal que permeava tudo e, portanto, pode ser classificado como panteísta. O mesmo não se aplica ao autor de Éclairssemens Sur L’Apocalypse, que não põe em dúvida a autenticidade dos profetas do Velho Testamento. Ele escreveu sua obra com a melhor das intenções e acreditava que prestava um serviço ao mundo cristão e à crítica sadia ao publicá-lo. E com justa razão afirma, antecipando-se às críticas, que «aqueles que acreditam que o Espírito divino ditou ou inspirou as visões contidas no Apocalipse não suspeitam que blasfemam contra a Divindade.» E é por concordar com sua visão e o seu propósito que resolvemos traduzir e publicar seu livro, mesmo sabendo que será execrado pelos crentes fanáticos de todas as denominações, e odiado por esotéricos e entusiastas de profecias catastróficas.

Fonte de delírios milenaristas


Por volta do século IV, quando a Igreja e o Império Romano se conciliaram, e o futuro do cristianismo já não se separava do império, os teólogos gregos e latinos não podiam mais admitir a validade de um texto baseado no ódio a Roma e que anunciava o fim do seu reino. O Apocalipse foi declarado apócrifo pela Igreja do Oriente, cujos membros educados na cultura helênica repudia­vam os escritos milenaristas judaico-cristãos. Mas o texto enraizara-se de tal modo no imaginário dos fieis, que foi impos­sível expurgá-lo do Novo Testamento. Até o século IX ainda havia a crença no retorno de Nero, desempenhando o papel da Besta à fren­te dos dez reis para destruir Roma...

Ao longo do tempo, o Apocalipse inspirou inúmeros profetas, como a abadessa alemã Hroswitha (950), o monge Raoul Glaber (975), Santa Hildegarde de Bingen (séc. XI-XII), contemporânea do místico Joaquim da Fiore, que retomou o Apocalipse para reafirmar suas predições e aplicá-la a um futuro próximo. E a coisa não parou por aí, praticamente todos os místicos da tradição cristã continuaram a ser influenciados pelo texto de João de Patmos.  Até mesmo no Brasil, em pleno século vinte, tivemos um «profeta» — o célebre coronel Rolim de Moura — que adaptou as ideias contidas no Apocalipse para fazer previsões para o Brasil e o mundo. Baseado nesse texto, na numerologia, na piramido­logia e em Nostradamus, chegou a criar uma «ciência» a que deu o nome de teocósmica, através da qual acreditava que se poderia prever o destino das nações e do próprio planeta. É desnecessário dizer que nenhuma de suas profecias se realizou...

O Apocalipse, com seu simbolismo obscuro e incompreensível aos comuns dos mortais, prestou-se com o passar dos séculos às mais desvairadas interpretações, e seus adeptos fanáticos nunca deixaram de ver nos acontecimentos e personagens históricos de seu tempo os sinais descritos nos textos proféticos.

O livro tem intrigado incontáveis pesquisadores e exerceu verda­deiro fascínio entre muitos deles. Mesmo os religiosos dos diversos ramos do cristianismo divergem quanto à sua inter­pretação. Entre os evangélicos, há os preteristas que defendem que a maior parte do Apocalipse tem sua principal referência no passado e descreve simbolicamente a luta entre o cristianismo e o Império Romano; os futuristas declaram que a maior parte do livro se cumprirá no futuro; os historicistas — entre os quais se destacam Wicliff, Lutero e Isaac Newton — não têm dúvida de que o livro já se cumpriu parcialmente no passado, está se cum­prindo no presente, e se cumprirá plenamente no futuro; já os idealistas, ou espiritualistas, rejeitam todas essas três corren­tes, e recorrem a um método de interpretação mais espiritual, filosó­fico ou poético, sustentando que a linguagem do vidente é altamente simbólica, entre seus adeptos destacam-se Clemente de Alexandria e Orígene. Há ainda uma quinta corrente, dos que defendem a tese mistagoga, a mais permanente na exegese, que vê no livro uma descrição da própria Igreja, em sua liturgia, como a Jerusalém celeste. Como tal, o que é revelado também é consistente com aspectos da Igreja terrestre que é apenas seu reflexo em perpétuo devir (sua liturgia, sacramentos, seu tempo — incluindo seu término).

Os católicos em geral tendem a considerar que o Apocalipse não deve ser interpretado ao pé da letra. Os mais eruditos e penetrantes espíritos da Igreja, desde sua própria fundação, o estudaram sem chegar a uma interpretação unânime quanto a todos os pontos. O livro permanece misterioso em grande parte, e por isso a Igreja adota muita cautela diante dele, sem impor oficialmente nenhuma das numerosas explicações dadas até mesmo por Doutores da Igreja.

As opiniões também divergem quanto à validade profética e à própria qualidade literária do texto. Renan, por exemplo, vê no estilo de seu autor a «perfeita antítese da obra-prima grega», mas reconhece que ele foi o último grande profeta e que o Apocalipse «oferece o fenômeno quase único duma imitação de gênio, uma rapsódia original». Já para D. H. Lawrence, é um «livro pagão muito anterior a Cristo, condimentado pela simbologia cósmica, corroído depois por escribas judeus» e moldado pelas conveniên­cias da nova religião. Segundo ele, os profetas tardios que o usaram tentaram ocultar os vestígios da sua matriz pagã e, em sua opinião, esse talvez seja o mais detestável livro da Bíblia, uma «orgia de mistificação», repleta de artificialismo pomposo e de imagens que são «totalmente apoéticas e arbitrárias».

O Apocalipse tornou-se fonte dos mais descabelados delírios milenaristas que perduram até hoje. Sobre ele diz Gérard de Séde, em seu livro Estranho Mundo dos Profetas: 

«Há vinte séculos que o Apocalipse foi saqueado, proposital ou inconscientemente, que foi plagiado, deformado, adaptado aos gostos da época e a serviço das mais diferentes causas, pelos pregadores e os blasfemadores, os que vaticinavam a boa ou a má sorte».

E conclui, dizendo aquilo que todas as pessoas de bom senso e razoavelmente bem informadas já sabem: 

«...o Apocalipse é o modelo de profecia comprovadamente falsa: o autor anuncia­va o próximo fim do mundo, e já se passaram dois milênios sem que isso acontecesse».

Não há razão para acreditar que as visões desse livro se apli­quem a quaisquer eventos da atualidade. Visionários do passado e do presente têm se debruçado sobre ele na vã esperança de ante­cipar o futuro e, não raro, com seu fanatismo cego, já provoca­ram lamentáveis tragédias. 

Através dos tempos, o texto do Apocalipse inspirou líderes religio­sos fanáticos a promover revoltas e lutas sangrentas. Seria exaustivo citar todos estes movimentos e quem se interessar pelo assunto pode encontrar fartas referências nos livros de História. Nos séculos XVI e XVII, o profetismo apocalíptico esteve associado às revoltas de camponeses contra a Igreja e os príncipes na Alemanha, nos Países Baixos e na França. Seus líderes geralmente exigiam o «cumprimento das profecias», a libertação da Igreja, o castigo dos malvados e o triunfo da justiça. Não é à toa, pois, que os padres relutaram em aceitar a temática do Apo­calipse. Sempre que estas ideias ganham força entre o povo a própria Igreja passa a correr riscos...  Todos os falsos profetas tentaram precipitar o cumprimento das profecias de imediata consumação dos tempos e, frequentemente, só conseguiram provocar derramamento de sangue, tornando-se também vítimas destas mes­mas ideias.


Notas:

(1) Mircea Eliade, Hist. das Crenças e das Ideias Religiosas, Tomo 2, vol. II, pág. 37
(2) Salomon Reinach, Cultes, Mythes et Religions, vol. III, pág. 282.
(3) Ernest Renan, O Anticristo, pág. 280.
(4) Jean-André de Luc também não é citado por A. Loisy (L’Apocalypse de Jean, 1923), nem por Aimé Puech, autor de Histoire de la littérature grecque chrétienne: depuis les origines jusqu’à la fin du IVe siècle (1920).
(5) Após a morte de Dupuis, sua obra foi colocada no Index librorum proibitorum, e em 1823 uma edição do Resumo da origem de todos os cultos foi tirada de circulação e destruída por ordem judicial.


Nenhum comentário:

Postar um comentário